quarta-feira, 18 de abril de 2012

Igreja entre aspas: somos pedra ou gente?


Prefácio do livro:


As aspas são as quatro paredes

Meu amigo Tuco Egg era uma bênção, mas agora não vai mais à igreja.

O Tuco costumava ser visto entrando na igreja com a família, dando aula na Escola Dominical, levando no carro abarrotado de adolescentes e mochilas para algum retiro, desenhando cartazes e imprimindo folhetos, organizando campanhas, promovendo jantares, sorrindo satisfeito nas confraternizações. Ele cantava, orava, dava ofertas e sentava-se naquele banco. 
Hoje é domingo e só Deus sabe onde anda o Tuco. Talvez esteja debaixo do sol num parque ou debaixo de uma cachoeira com a família. Talvez esteja ajudando a empurrar a lama para fora da casa de alguma vítima da enchente, ou ouvindo causos de um lavrador numa casinha de madeira no pé da serra. Talvez esteja molhando os pés no Nhundiaquara ou guiando filhos e sobrinhos ao topo do Anhangava. Talvez esteja descalço e de pijama, comendo torradas e tomando leite desnatado na mesa da varanda enquanto atualiza a Trilha no seu laptop. Talvez esteja dormindo até tarde. A questão é que não temos como saber.

Há dez anos, para caracterizar essa metamorfose diríamos que o Tuco anda “afastado da igreja”. Se o víssemos tomando cerveja num bar ou entrando numa boate nos sentiríamos livres para dizer, mais enfaticamente, que “está desviado”. 
Mas como insiste em continuar falando sobre Deus no seu blog, o Tuco parece ser o que alguns andam chamando de desigrejado: um cristão secular, sem vínculo institucional. Do mesmo modo que há organizações não-governamentais, há hoje em dia esses cristãos não-organizacionais. Conforme uma pesquisa recente, são cada vez mais numerosos esses que deixam a igreja formal para trás mas não abandonam – segundo eles; como de fato saber? – o seu compromisso com Jesus.O paradoxo essencial de pessoas como o Tuco é que tomaram a decisão de deixar a igreja de tanto que são apaixonados pela causa da igreja. Acabaram concluindo que a igreja formal não tem mais ou menos defeitos do que qualquer outra instituição, mas tem um defeito e um atrevimento que as outras não têm: o de alegar uma continuidade com o sonho de Jesus para o reino de Deus (venha o teu reino) na terra. Da minha parte, entendo bem como essa gradual percepção pode acabar levando alguém a trocar a igreja formal por uma empreitada com contornos menos definidos, com menos confortos e mais desafios. Quanto mais leio o Evangelho mais me convenço de que o sonho do reino é ao mesmo tempo muitas vezes mais ambicioso e muitas vezes mais modesto do que todas as igrejas dão a entender. E, se alguns de nós concluem que são chamados para viver no mundo, não é para sermos finalmente deixados em paz; é porque estávamos em paz dentro da igreja, e nada nos incomodava mais. Diante do mundo novo esboçado pelas parábolas do reino e pelo modo de vida do seu narrador, a igreja formal parece ter se conformado com pouco.*

O Tuco é um cara esperto e não ignora que há uma tentação de elitismo nessa história de decidir sair da instituição e tentar viver a vocação cristã fora da igreja. Pode sempre ficar a impressão de que saímos graças ao nosso entendimento superior ou a uma superior revelação; que nos foi concedido enxergar uma verdade mais elevada que à maioria dos crentes, simplórios demais para vislumbrá-la.  
Alguns de nós se debatem por anos na tentativa de resolver esse dilema. Mais simples seria ter tido uma história e uma lucidez como a de Simone Weil, que converteu-se e mesmo depois disso – ela diria por causa disso – recusou-se deliberadamente a afiliar-se a qualquer igreja. Weil intuía que os cristãos são chamados, pelo exemplo da encarnação, a uma plena identificação com o mundo e no mundo. Isso inclui abrir mão, na medida do possível, do que ela chamava de “patriotismo eclesiástico”:
De qualquer modo, quando penso no ato pelo qual eu me afiliaria à igreja como algo concreto, que pode acontecer num futuro próximo, nada me dá mais dor do que a ideia de separar-me da 
imensa e desafortunada multidão de descrentes. Tenho a necessidade essencial, creio que pode-se dizer a vocação, de andar entre homens de todas as classes e feições, misturando-me a eles e compartilhando de sua vida e perspectiva na proporção que a consciência permite, mesclando-me à multidão e desaparecendo no meio dela, para que eles se mostrem a mim como são, removendo todos os seus disfarces diante de mim. Isso porque desejo conhecê-los de modo a amá-los como são. Pois se eu não amá-los como são, não será a eles que estarei amando, e meu amor será irreal.

Creio que o Tuco concordaria que trocar os confortos da igreja formal pelo terreno não-mapeado do cristianismo secular requer uma insensatez semelhante e uma semelhante ambição. Não se trata de querer ser melhor do que ninguém, mas precisamente o contrário: trata-se de abrir mão, do modo mais radical que se possa conceber, do projeto de ser melhor do que qualquer um. É entender que o testemunho mais fundamental, que não se deve sonegar de ninguém, é o da humanidade compartilhada. Para usar uma expressão de Weil, é “desenraizar-se por amor ao próximo e a Deus”, assumindo voluntariamente o exílio anônimo, semglamour e sem trégua do homem comum. 
Se a hospitalidade é a virtude cristã por excelência, sua aplicação mais radical é sair finalmente do conforto da casa.

O lance é que para quem viveu desde sempre na igreja pode ser mais difícil desenraizar-se do que para Weil, que resistiu até o fim. E, de novo, esse passo representa uma verdadeira crise somente para os que sempre consideraram a igreja a parte mais essencial da vida, e portanto da vida cristã. Só se toma um passo como esse depois de um longo período de ruminação no deserto, depois de uma degustação lenta e agridoce dos Evangelhos, depois de uma avaliação corajosa de uma série de mecanismos que fazem parte da gente muito mais do que da própria instituição.

É essa repensagem que o Tuco faz neste livro, primeiro para si mesmo, mas também para quem quiser ouvir. Ele não quer ensinar ninguém a sair da igreja, mas quer que todos ponderem que a igreja, como indicada no Novo Testamento, deve incluir muito mais do que estamos acostumados a pensar. E se a igreja for um lugar de onde ninguém pode sair, mesmo se quiser? E se for uma graça estendida ao mundo, e não um projeto de seleção? E se a expressão “os portões do inferno não prevalecerão contra ela” for indicação de que só o inferno tem portões, e não a igreja? Se aspas são quatro paredes, ninguém deveria ser capaz de colocar paredes ao redor da igreja. Este livro quer levá-lo a um lugar de onde você possa vislumbrar isso.

Não é o Tuco que precisa de companhia; é o mundo.

Paulo Brabo

Campina Grande do Sul, outubro de 2011


Um comentário:

  1. nao vejo a hora de compartilhar uns dias de caminhada com o mano Tuco na Nigeria. Com a graca do Pai nos encontraremos la daqui alguns dias. Loe

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